Ariano Suassuna (N. Sra. das Neves, 1927 - Recife, 2014)
Biografia, Bibliografia, Discurso de Posse, Textos escolhidos, Artigos, Vídeos e Notícias no sítio oficial da Academia Brasileira de Letras (em português)
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=305
Mocinha
Em 1990, quando tomei posse de minha cadeira na Academia Brasileira de Letras, agi de modo a ligar o mais possível a cerimônia, o uniforme, o colar e a espada aos rituais de festa do nosso povo. Eu lera, de Gandhi, uma frase que me impressionou profundamente. Dizia ele que um indiano verdadeiro e sincero, mas pertencente a uma das classes mais poderosas de seu país, não deveria nunca vestir uma roupa feita pelos ingleses. Primeiro, porque estaria se acumpliciando com os invasores. Depois, porque, com isso, tiraria das mulheres pobres da Índia um dos poucos mercados de trabalho que ainda lhes restavam.
A partir daí, passei a usar somente roupas feitas por uma costureira popular, Edite Minervina. E também foi ela quem cortou e costurou meu uniforme acadêmico, bordado por Cicy Ferreira. Isaías Leal fez o colar e a espada, unindo, nesta, num só emblema, a zona da mata e o sertão.
Naquele ano, era Miguel Arraes quem governava Pernambuco. E, como o Estado que me adotou como filho se encarregou da doação normalmente feita ao acadêmico pela terra de seu nascimento, combinei tudo com o governador e fizemos, no palácio do Campo das Princesas, uma espécie de cerimônia prévia na qual Arraes (que, como eu, é egresso do Brasil oficial, mas procura se ligar ao real) faria o discurso de entrega das insígnias; e artistas populares me entregariam os adereços feitos por eles: Edite e Cicy, o fardão, Isaías Leal, o colar, e mestre Salusitano, a espada (que, na ABL, me seria entregue por meu mestre Barbosa Lima Sobrinho). Depois que Isaías Leal me deu o colar, no Recife, pedi à maior cantadora nordestina, Mocinha de Passira, que o colocasse em meu pescoço - uma vez que, na Academia, escolhera para isso outra mulher, minha querida Rachel de Queiroz.
Como se vê, em tudo, eu tentava mostrar, do modo canhestro, simbólico e precário que me é possível, que, apesar de nascido e criado no Brasil oficial, procuro sempre não esquecer que existe o Brasil real e é a seu lado que me alinho em todas as circunstâncias da minha vida.
Foi por tudo isso também que, escrevendo aqui em dezembro do ano passado, escolhi dois personagens simbólicos para representarem o Brasil real. Dizia: “O primeiro é Chico Ambrósio, cabreiro do sertão da Paraíba, homem de sangue predominantemente indígena e jeito aciganado; a outra é Mocinha de Passira, violeira dotada de uma voz impressionante”.
E concluía: “Na minha opinião, o que devemos fazer é olhar o Brasil de Chico e Mocinha para seguir e aprofundar (no campo social, político e econômico) o caminho indicado por Antônio Conselheiro - aquele socialismo-de-pobre que, para nós, foi uma picada aberta em direção ao sol de Deus”.
Nos tempos de desprezo que estamos vivendo em relação à cultura brasileira (e em especial à popular), espero, então, que pelo menos as nossas universidades percebam a importância dessa cantora e repentista, que, como afirmei em meu discurso da ABL, significa para mim, para o Brasil e para o nosso povo o mesmo que Pastora Pavón representava para García Lorca, para a Espanha e para o povo espanhol”.
Folha de S. Paulo, 27/06/00
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