sexta-feira, 14 de junho de 2024

AS CARTAS NÃO MENTEM JAMAIS

Ele era o primeiro morador a sair pra rua. Às 5h pontualmente.

"Bom dia, Genival."

"Bom dia, seu Aristarco."

Em seguida, ele perguntava: "Alguma carta pra mim?".

Todo dia, tudo sempre igual, fosse primavera, verão, outono, inverno, primavera...

”Não, seu Aristarco.”

Além dessa rotina diária, chamava a atenção sua figura física. Estava sempre de terno e camisa social. Era alto, corpulento, olhos saltados, cabelo ralo. Um homem feio, acometido por tristeza e uma sensação de descontentamento.

Uma hora depois, seu Aristarco estava de volta com o pão e o leite.

Eu não o veria mais durante aquele dia, somente às quartas-feiras, quando seu Aristarco saia de carro e voltava com compras do supermercado.

De quem seria a carta pela qual ele tanta esperava?

Eu estava trabalhando naquele prédio há um ano.

Seu Aristarco fazia 5 anos que morava lá, mas pouco se sabia sobre ele.

Arredio, evitava o contato e a convivência com os moradores, me contaram.

Era inacessível a conversas de elevador. Respondia com nada além de um bom dia ou boa tarde e abaixava o olhar para impedir prosseguimento. 

Parecia não ter amigos ou outros familiares. Ninguém o visitava.

Naquele dia, chegou uma carta pra seu Aristarco. No finalzinho da tarde. Foi o Zé Augusto, o porteiro das 14h, que recebeu a correspondência.

Sabendo do seu desejo diário, de pronto interfonou pro seu apartamento.

Seu Aristarco desceu rapidamente. Sua espera chegara ao fim. Era tanta a ânsia em ler que, contrariando seu jeito introvertido, abriu a carta na frente do Zé Augusto.

À medida que lia, o Zé Augusto me contou, seu rosto foi se transformando. Era visível o impacto que a leitura daquelas páginas lhe causava.

Seu corpanzil se curvou e, me contou o Zé Augusto, "parecia que ia desmaiar".

Visivelmente transtornado, como um sonâmbulo, subiu pelo elevador de serviço, sem ao menos responder ao boa noite da dona Lourdes, sua vizinha de andar.

Seu Aristarco não desceu hoje às 5h da manhã.

Quando a perícia chegou, dona Lourdes disse que ouvira o som de um tiro. "Foi, mais ou menos, à meia-noite. Eu tinha adormecido no sofá. Acordei assustada, mas pensei que era no faroeste que eu estava assistindo."

Encontraram apenas um pedaço intacto da carta queimada com estas duas palavras... "para sempre".

LIC

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