Ao atravessar o espaço em direção ao
banheiro, uma imagem fere sua retina. Para com o pé direito suspenso entre o
prosseguir e o voltar, mas um quase nada basta para que se decida. Meio passo
de marcha à ré, um giro de 45 graus à direita e está frente a frente com Maria
Emília.
Diante do espelho de vidro biseauté, se reconhece.
Lábios pálidos, ainda sem o batom vermelho
que passou a usar depois dos 40. Cabelo insone, da cor e corte sugeridos -
“castanho claro dourado repicado em dégradé suaviza esse rosto quadrado e
combina com a cor da sua pele”, afirmara o cabeleireiro. Nariz aquilino,
herança das invasões bárbaras na descendência dos Navarros. Sobrancelhas com
falhas e alguns fios brancos que teimam em se destacar. Leve flacidez da pele
ao redor da boca. Fragilidade no olhar azul, marcado de zelos.
- Mãe, onde você guardou minha saia jeans,
aquela com a barra desfiada?
- Mãe, o paletó azul-marinho já voltou da
lavanderia?
- Querida, que horas são?
A voz dos filhos e do marido a fazem
despertar. Sente cheiro de leite derramado e de café coado. Já são sete horas,
de um dia que não será como outro qualquer. “Santo Expedito, me ajude”, pede ao
santo de devoção.
Entra no banheiro e começa a se despir. Outra
vez, um espelho. Cruel e devastador como um inimigo, sobre a pia, por toda a
parede, encimado por mil lampadinhas de camarim.
Desabotoa a camisa do pijama de flanela.
Despida da cintura para cima, seminua, Maria Emília e seu corpo se defrontam.
Sobre a magra caixa torácica, os seios,
decompostos em mamas, já não são nem firmes nem cheios. A calça do pijama
desliza em direção ao chão.
No púbis, recoberto por rala plumagem, uma
cicatriz. O recorte horizontal de uma cesariana, no limite superior, formando o
lado maior do triângulo. “Os gêmeos nasceram com três quilos cada e a termo”,
gostava de contar.
- Dona Emília, preciso de dinheiro pra
comprar a mistura do almoço.
- Pode deixar que eu vou ao supermercado,
Jandira.
Se veste rapidamente. Sai sem ninguém a ver.
E sorri para Maria Emília no espelho do elevador.
Entra no carro e acelera em direção ao
passado.
“Mal de Alzheimer. Ela não deve mais sair ou
ficar sozinha. Em pouco tempo, nem vai saber que você é a filha.”
As palavras do médico lhe deram o conforto de
não precisar mais fingir que a amava.
O dinheiro da aposentadoria seria suficiente
para pagar uma Casa de Repouso. Iria vê-la uma vez por semana, por quinze
minutos, quando tanto. Abreviaria a visita incômoda ou por causa do marido, dos
filhos ou do trabalho. Não teriam muito o que se dizer. Nem nunca tiveram.
Naquele dia, a mãe lhe parecera envelhecida.
Tivera o desejo de abraçá-la, como no tempo em que se é apenas filha. Foi
quando seu olhar a encontrou. “Maria Emília, vamos pra casa?” A enfermeira
entrara no quarto. Era a hora do banho. Não precisou responder, carecia de
respostas.
A Casa de Repouso ainda está às escuras.
Estaciona o carro e se apressa.
“Que aconteceu, dona Maria Emília? Aqui, tão
cedo!”
“Posso ver minha mãe?”
Que bonito!
ResponderExcluirObrigada pela atenção. Bj
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