domingo, 31 de agosto de 2014

VOLTANDO PRA CASA

Ao atravessar o espaço em direção ao banheiro, uma imagem fere sua retina. Para com o pé direito suspenso entre o prosseguir e o voltar, mas um quase nada basta para que se decida. Meio passo de marcha à ré, um giro de 45 graus à direita e está frente a frente com Maria Emília.

Diante do espelho de vidro biseauté, se reconhece.

Lábios pálidos, ainda sem o batom vermelho que passou a usar depois dos 40. Cabelo insone, da cor e corte sugeridos - “castanho claro dourado repicado em dégradé suaviza esse rosto quadrado e combina com a cor da sua pele”, afirmara o cabeleireiro. Nariz aquilino, herança das invasões bárbaras na descendência dos Navarros. Sobrancelhas com falhas e alguns fios brancos que teimam em se destacar. Leve flacidez da pele ao redor da boca. Fragilidade no olhar azul, marcado de zelos.

- Mãe, onde você guardou minha saia jeans, aquela com a barra desfiada?

- Mãe, o paletó azul-marinho já voltou da lavanderia?

- Querida, que horas são?

A voz dos filhos e do marido a fazem despertar. Sente cheiro de leite derramado e de café coado. Já são sete horas, de um dia que não será como outro qualquer. “Santo Expedito, me ajude”, pede ao santo de devoção.

Entra no banheiro e começa a se despir. Outra vez, um espelho. Cruel e devastador como um inimigo, sobre a pia, por toda a parede, encimado por mil lampadinhas de camarim.

Desabotoa a camisa do pijama de flanela. Despida da cintura para cima, seminua, Maria Emília e seu corpo se defrontam.

Sobre a magra caixa torácica, os seios, decompostos em mamas, já não são nem firmes nem cheios. A calça do pijama desliza em direção ao chão.

No púbis, recoberto por rala plumagem, uma cicatriz. O recorte horizontal de uma cesariana, no limite superior, formando o lado maior do triângulo. “Os gêmeos nasceram com três quilos cada e a termo”, gostava de contar.

- Dona Emília, preciso de dinheiro pra comprar a mistura do almoço.

- Pode deixar que eu vou ao supermercado, Jandira.

Se veste rapidamente. Sai sem ninguém a ver. E sorri para Maria Emília no espelho do elevador.

Entra no carro e acelera em direção ao passado.

“Mal de Alzheimer. Ela não deve mais sair ou ficar sozinha. Em pouco tempo, nem vai saber que você é a filha.”

As palavras do médico lhe deram o conforto de não precisar mais fingir que a amava.

O dinheiro da aposentadoria seria suficiente para pagar uma Casa de Repouso. Iria vê-la uma vez por semana, por quinze minutos, quando tanto. Abreviaria a visita incômoda ou por causa do marido, dos filhos ou do trabalho. Não teriam muito o que se dizer. Nem nunca tiveram.

Naquele dia, a mãe lhe parecera envelhecida. Tivera o desejo de abraçá-la, como no tempo em que se é apenas filha. Foi quando seu olhar a encontrou. “Maria Emília, vamos pra casa?” A enfermeira entrara no quarto. Era a hora do banho. Não precisou responder, carecia de respostas.

A Casa de Repouso ainda está às escuras. Estaciona o carro e se apressa.

“Que aconteceu, dona Maria Emília? Aqui, tão cedo!”

“Posso ver minha mãe?”

A porta do quarto está entreaberta. Ela ainda dorme. Se debruça e, bem baixinho, para não a assustar, responde: “Sim, mãe, vamos pra casa”.

LIC, ago. 2003

2 comentários:

Obrigada por sua visita. Para preservar a integridade deste Blog, todas as mensagens serão lidas antes de serem publicadas.
Se você gostou do conteúdo deste Blog, compartilhe.