O
passado é um lugar perigoso.
Naquele
sábado modorrento, Elena foi até lá num ato involuntário. "Resolveu” fazer
faxina nas gavetas da escrivaninha da sua biblioteca. Sim, não somos donos nem do próprio nariz, porque quem nos comanda é o nosso inconsciente.
Em
uma delas encontrou, entre muitos outros objetos e fotos, a carta do José Maria
Carvalho de Albuquerque, um amigo de seu irmão dos tempos da Faculdade de
Direito do Largo São Francisco.
“Por
que eu guardei essa carta?”, se perguntou.
Por
alguns anos, José Maria frequentara sua casa. Era recebido na sala de estar e
lá ficava.
Nunca
foi convidado à mesa de jantar, pois não ganhou intimidade e não dava.
Ele
e o irmão de Elena passavam a noite em conversas intermináveis sobre política,
economia, jazz, cinema, com eloquência e paixão.
Certo
final de ano, José Maria convidou Elena pra comemorar o Réveillon com seus
pais, sua irmã e mais alguns casais amigos.
"Todos
os anos, celebramos o Ano Novo no Jóquei Club", ele explicou.
Elena
ficou entre admirada e deslumbrada.
Admirada
porque José Maria nunca se dignara trocar palavras com ela. Deslumbrada porque
tinha 19 anos e sempre festejara a chegada do Ano Novo com a família,
assistindo a Corrida de São Silvestre e torcendo pra ganhar o bolão que seu tio
Jeremias organizava.
Para
tanto, bastava um vestido branco e uma calcinha nova da cor correspondente ao
desejo a ser alcançado no Ano Novo.
Portanto,
não tinha roupa nem sapato adequados para um Réveillon no Jóquei Club, não
conhecia as outras pessoas, a não ser ele e, mesmo assim, tão pouco que nem
sabia onde morava.
"Claro
que você vai aceitar o convite! Eu empresto pra você meu vestido longo, os
sapatos de salto alto, arrumo seu cabelo e faço a maquiagem", respondeu
Roberta, sua melhor amiga, quando Elena lhe contou sobre o convite.
Para
seus pais, estava tudo bem. "É amigo do seu irmão, pode ir."
Aceito
o convite, José Maria veio buscá-la pontualmente às 8h da noite do dia 31 de
dezembro.
"Vamos
passar em casa para um aperitivo antes de irmos ao Jóquei", explicou.
José
Maria tinha um Porsche azul cobalto. Abriu a porta do carro pra Elena entrar.
"Que cavalheiro!", ela pensou. Não estava acostumada a essas
gentilezas.
Até
então, tivera dois namorados: o Miguel, que nem carro tinha, e o Aluísio, que ainda
vivia de mesada.
Elena
estava sendo esperada. Foi apresentada, observada, dissecada.
O
apartamento era suntuoso. O sofá e as poltronas da sala de estar eram estofados
brancos, as cortinas, de seda ouro velho, os lustres de alabastro. Uísque para
os homens, Ramazzotti Rosato para as mulheres, pães, blinis, caviar e foie
gras. Tudo que Elena já vira saborearem em filmes.
"Lá
em casa, aperitivo é tira gosto: cerveja, amendoim e tremoço", lembrou.
Elena
não aceitou nada. Não sabia comer nem beber nada daquilo.
José
Maria bebeu, comeu, conversou. Estava à vontade, como um animal no seu habitat.
Por
fim, foram para o Réveillon no Jóquei Club.
A
ceia – salada verde com tomate, azeitonas marinadas e beiju crocante, filet
mignon ao molho de cogumelo porcini, arroz com pequi – foi harmonizada com
vinhos, inclusive a sobremesa, tuile rendada com calda de chocolate.
Com
aquela, era a primeira vez que Elena comia filet mignon. Sua mãe gostava de
bife de contrafilé. "Deixa a gordurinha", ela pedia ao açougueiro.
À
meia-noite, confete, serpentina, happy new year pra cá, happy new year pra lá,
José Maria, com uma taxa de concentração alcoólica alta, beijou Elena diversas
vezes na boca.
Elena,
que harmonizara tudo com tudo para descontrair, correspondeu na medida da sua
também alta taxa de concentração alcoólica.
Quando encontrou a Roberta, só
contou que tinha sido beijada, sem detalhes apesar da insistência da amiga em
saber mais e mais.
No
restante da noite, José Maria agiu como se nada tivesse acontecido. Muito
eloquente, com um talento natural para atrair a atenção sobre si, falou de tudo
um pouco e, por fim, disse que aquele Ano Novo seria seu ano sabático. “Quero
buscar experiências novas, diversas, me dedicar à reflexão e à auto
descoberta.”
Elena
notou que seus pais e sua irmã escutaram como se ignorassem essa sua decisão.
Voltaram
pra casa em silêncio, despedindo-se apenas com um “Obrigada por sua companhia”.
A despeito do beijo, não ganharam intimidade.
No
dia seguinte, Elena recebeu um buquê de rosas vermelhas acompanhado com a carta
que encontrou naquela gaveta.
Passados
dois anos, o irmão de Elena lhe contou que os pais e a irmã de José Maria
tinham morrido no acidente aéreo do Airbus A330 da Air France.
“José
Maria não voltou mais para o Brasil depois daquele ano. Ele mora na França, em
Paris. Recebi um convite dele para a inauguração da sua casa de shows.
Estranho, ele assinou apenas Maria Albuquerque de Carvalho. Esqueceu o
José."
Elena
entendeu a razão do convite e dos beijos.
Por
fim, rasgou a carta.
LIC