Amanheceu em São Paulo.
O pouco que sabíamos do sr. Mário Bonaventura se referia à sua rotina diária, mais precisamente aos breves instantes que o víamos sair a pé pela manhã, pontualmente às 7h, e retornar no início da noite, pontualmente às 19h.
Morávamos no edifício número 77 da rua da Glória, um prédio antigo, um dos poucos residenciais na região da Baixada do Glicério ocupada por mercadinhos e botecos.
Com seis apartamentos kitchenettes em cada um dos 10 andares, tinha uma numerosa população vivente, 120 pessoas no mínimo.
Bonaventura morava no terceiro andar, no fim do corredor.
Chegou por aqui numa manhã fria, chuvosa, de vento e rajadas. Quem o viu chegar, até hoje confirma sua distinção por seu trajar. "Estava bem vestido, de terno preto, camisa social, sapatos que brilhavam de tão lustrosos", o zelador contou pro repórter que veio colher indiscrições depois do incidente.
Carregava duas malas pretas e um estojo que parecia conter um violino. Mas os vizinhos declararam nunca ter ouvido um som que possivelmente pudesse vir de tal instrumento.
Não incomodava.
Mário Bonaventura era um corpo de uma magreza extrema que acrescentava alguns centímetros à sua estatura mediana de, provavelmente, 1m70 de altura. Aparentava 60 anos, mas, sob a foto estampada no jornal no dia seguinte ao incidente, constava que nascera em 1950.
Não casara, não tivera filhos. Fora professor de escola primária em São José do Rio Preto, cidade do interior de São Paulo, aposentado como tal. Tudo isso revelado pelo primo que encontraram por lá e que não ajudou muito nas investigações. Estavam brigados há bons anos.
Naquele dia, dona Orlandina, a viúva do 301, foi lhe pedir emprestado um ovo que faltava para finalizar o suflê de espinafre que estava preparando para o almoço do neto.
"A luz da cozinha estava acesa. Toquei a campainha. Esperei alguns instantes. Toquei de novo. Esperei mais um pouquinho. Não quis incomodar mais. A receita pedia três ovos, mas fiz o suflê com dois ovos mesmo”, ela contou ao policial.
O cheiro nauseabundo, a partir do terceiro andar, se espalhou por todos os andares. Arrombaram a porta.
Mário Bonaventura partiu sem contar sua história, sem que soubéssemos sua história.
Como disse um amigo debochado, "Só há uma vantagem na solidão, em estar só: poder soltar um peido em qualquer lugar dentro de casa".
A humanidade está necessitando urgentemente de afeto e milagres.
LIC
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