terça-feira, 23 de setembro de 2014

CENA

  

Em uma parede, Marilyns e o Cristo preso à cruz dourada disputam espaço e devoção.

Na outra, do teto ao rodapé, o espelho de camarim é uno e soberano senhor.

A janela está escancarada, feito pernas de mulher vadia, expondo o Mangue sem pudor nem retoques.

Do lado de dentro da porta, ela tem dependurado o calendário seicho-no-ie do ano que se foi, no dia que hoje é. A jaculatória alimenta e engorda sua primeva ignorância: "um suspiro para o que foi, um sorriso para o que será, eis a vida".

Brota do teto um fio descamado a sustentar o lustre japonês de papel de arroz. A lâmpada vermelho incandescente demarca aquele território. 

Sobre uma tosca mesa de centro, o vaso bico de jaca acolhe girassóis de plástico salpicados de cocô de mosca.

De costas para a janela, o encosto da cadeira de fórmica verde sustenta seu vestido de cetim vermelho e um terno de linho cru.

No ar, tem perfume de jasmim-do-cabo e o choro faminto do menino enjeitado, entretecido de gemidos e sussurros.

LIC, 2002

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