quinta-feira, 3 de outubro de 2024

"FÉ EM DEUS E PÉ NA TÁBUA."

Tudo isso é bonito. Tudo isso é parte da minha vida.

Uma frase na rabeira do caminhão de feira estacionado na rua da minha casa me lembrou papai.

Papai colecionava frases de para-choque de caminhão. Guardava todas na sua memória prodigiosa que, entre outros registros, tinha indelevelmente gravados o número do telefone de seus irmãos, de seus filhos, de todos os seus queridos, talvez, até de alguns desafetos, que eram pouquíssimos.

“Fé em Deus e pé na tábua” era uma das suas preferidas.

Ele a repetia repetidas vezes pra meus irmãos, pra mamãe, pra mim, pra quem quer que lhe desse um minuto de atenção.

Homem de pouca cultura e leitura, acredito que essa frase sintetizava sua filosofia de vida: confiar na Providência divina, mas não esperar sentado por ela.

Meses depois de nascer, seu pai morreu. Era o ano 1926.

Com a mãe e quatro dos sete irmãos, veio do interior de São Paulo à procura de meios de sobrevivência. 

Vez ou outra, ele evocava lembranças pessoais, alguns momentos da sua vida.

Apreciava os das noites estreladas e refletia sobre aqueles das noites escuras vividas numa cidade onde sempre garoava. 

Desprendido de medos, temores, receios, se aventurou por caminhos seguros e outros nem tanto. 

Nessa trajetória, ganhou muitos amigos em quem confiava sem pedir notas promissórias.

Casou ousadamente, pois tinha amor e salário de bancário. Pra ele, só isso bastava. Acho que pra minha mãe também. Se bem que ela condicionou seu sim ao do seu pai.

Com a dupla aceitação, casaram no dia 1° do ano seguinte ao de um ano de 366 dias. "Casar em ano bissexto dá azar", sentenciara minha avó paterna.

Como filho, honrou sua mãe. Mais do que isso, ele a amou até seus últimos dias. Tenho certeza que para todo o sempre.

Foi pai sem autoridade, mas de cuidado amoroso. Não deixou que o pão de cada dia faltasse em nossa mesa.

Amou minha mãe nos seus 60 anos de convivência, não isentos de queixas e discussões. Por diversas vezes, pensei em lhes sugerir a separação. Mas eram tempos em que se acreditava piamente que, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, "o que Deus uniu, ninguém separe”.

Não nos encontramos face a face há 15 anos. Em sonhos, estivemos juntos por duas vezes. Numa delas, ele estava em casa à minha espera. "Você tem a chave", ele disse quando lhe pedi para abrir a porta.

Não entendi nem ainda a encontrei.

À noite, vasculho meus sonhos à procura de respostas. O Jung diz que podem estar lá.

Confio nos dois.

LIC

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