Cada um é São Jorge, cada um é Dragão
Em janeiro deste ano, a propósito da novela “Salve Jorge”, publiquei algumas reflexões sobre o significado profundo, quase sempre
inconsciente, destas duas figuras: o santo guerreiro São Jorge e o terrível
dragão. Como celebramos no dia 23 de abril a festa do santo, até com um feriado
na cidade do Rio de Janeiro, é oportuno voltar ao tema de forma mais resumida.
Sabemos que a figura do dragão é um tema recorrente em
várias culturas, com significados até opostos. Assim, no Ocidente é negativo:
representa o mal e o mundo ameaçador das sombras. No Oriente, é positivo: é
símbolo nacional da China, senhor das águas e da fertilidade. Entre os astecas,
era a serpente alada (Quezalcoatl), expressão de sua identidade cultural.
Não raro, os pobres entre nós dizem: “Para me manter, tenho que matar um dragão por dia”, pois
assim o exige a dureza da vida.
Muitos antropólogos e psicólogos que trabalham sobre o tema
dos arquétipos, como Carl Gustav Jung, afirmam que o dragão representa uma das
figuras transculturais mais ancestrais da História humana. É a percepção de que
a nossa identidade profunda, o nosso eu, não nos é dado simplesmente pelo fato
de sermos humanos. Ele tem que ser conquistado numa luta diuturna, marcada por
ameaças e lutas.
Esta situação é representada pelo dragão, nosso inimigo
principal. Ele quer devorar o eu ou impedir que se liberte e faça o seu caminho
de autonomia e de liberdade. Só assim seríamos plenamente humanos.
Por isso, junto com o dragão sempre vem o cavaleiro São
Jorge que com ele se confronta numa luta renhida. Qual é o significado do
dragão e de São Jorge? Tanto um como o outro são partes de nossa realidade
humana. Cada um de nós carrega um dragão e um São Jorge dentro de si.
Isso é assim porque a nossa vida é sempre feita de luz e de
sombras, do dia-bólico (aquilo que separa) e do sim-bólico (aquilo que une).
Quem vai triunfar: São Jorge ou o dragão? A luz ou a sombra? A nossa melhor
parte ou a nossa parte pior? Ambas coexistem e sentimos a sua presença em cada
momento, às vezes, na forma e raiva ou de amor ou de violência ou de bondade e
assim por diante.
É aqui que entra a importância de uma identidade forte, de
um eu vigoroso: um São Jorge que possa enfrentar as nossas sombras e maldades,
o dragão, e fazer triunfar nossa parte melhor.
Sabemos que o caminho da evolução leva a humanidade do inconsciente
para o consciente, da fusão cósmica com o Todo para a emergência da autonomia
do eu livre e forte. Essa passagem é sempre dramática, tem que ser levada
avante ao largo de toda a vida, porque os mecanismos que querem manter cativo o
eu e impedir a emergência de nossa identidade permanentemente estão ativos. E é
preciso esforço e coragem para libertar o eu e conquistar a própria identidade
e também a liberdade pessoal.
São Jorge é o que nos mostra como, nessa luta, podemos ser
guerreiros e vencedores. Ele enfrentou o dragão: mostra a força do eu, da
própria identidade, garantindo a vitória.
Mas esta vitória não se conquista uma vez por todas. Ela tem
que ser renovada a cada momento, na medida em que as amarras vão surgindo. Daí
a importância uma ligação com São Jorge, como uma fonte de energia e de força,
capaz de nos assistir na luta até alcançar a vitória.
Há, contudo, um drama do qual não nos podemos furtar. Não se
trata de um defeito de construção. Mas é uma marca da nossa existência no
espaço e no tempo. Por mais que lutemos e vençamos, o dragão está sempre aí nos
espreitando. Ele nos acompanha. Mas ainda: é uma parte de nós mesmos, de nosso
lado obscuro, mesquinho, menor que nos impede de sermos plenamente humanos. Mas
também somos acompanhados por São Jorge que nos assiste na luta.
Por esta razão, nas muitas lendas existentes sobre São Jorge,
ele não mata o dragão, mas o vence mantendo-o domesticado, amarrado e submetido
aos imperativos do eu e da identidade pessoal. Ele não pode ser negado e
eliminado, apenas integrado de tal forma que perca seu lado ameaçador e
destruidor. Pode até nos ajudar a sermos humildes e evitarmos a demasiada
autoconfiança. Daí a vigilância e a referência a São Jorge que não só compensa
a nossa falta de energia, mas nos pode valer poderosamente.
É interessante observar que em algumas representações,
especialmente uma famosa de Barcelona (é seu patrono da Catalunha), o dragão
aparece envolvendo todo o corpo de São Jorge. Numa gravura de Rogério
Fernandes, artista brasileiro, o dragão aparece envolvendo o corpo de São
Jorge; este o segura pelo braço colocando o rosto do dragão, nada ameaçador, na
altura de seu rosto. É um dragão humanizado, formando uma unidade com São
Jorge.
Noutras (no Google há 25 páginas de gravuras de São Jorge
com o dragão) o dragão aparece como um animal manso sobre o qual São Jorge de
pé o conduz, sereno, não com a lança pontiaguda, mas com um bastão.
A pessoa que não renega o dragão, mas o mantem sob seu
domínio consegue uma síntese feliz dos opostos presentes em sua vida. Deixa de
se sentir dividido; encontrou a justa medida pois alcançou a harmonização do eu
e de sua identidade luminosa com o dragão sombrio, o equilíbrio dinâmico do
consciente com o inconsciente, da luz com a sombra, da razão com a paixão, do
racional com o simbólico, da ciência com a arte e da arte com a religião. Esta
pessoa emerge como um ser humano mais rico, mais sereno, mais compreensivo,
tolerante e compassivo, irradiando uma aura boa ao seu redor.
A confrontação com as oposições, do dragão com o São Jorge,
e a busca da síntese, constitui a característica de personalidades exemplares
que encontramos tantas por aí. Tais são figuras de Gandhi, de Luther King Jr.
de Dom Helder e, parece também, do atual Papa Francisco.
Repetimos: importa reconhecer que o dragão amedrontador e o
cavaleiro heroico São Jorge são duas dimensões de nós mesmos. Nosso desafio é
fazer que São Jorge tenha a primazia e não deixe que o dragão nos derrote e
tire o sentido e o gosto de viver.
Muitos brasileiros, especialmente os cariocas, têm grande
veneração por São Jorge; ela é tão forte quanto a de São Sebastião, patrono
oficial da cidade. Mas este possui um inconveniente: é um guerreiro, cheio de
flechas, portanto “vencido”. O povo sente a necessidade de um santo guerreiro
corajoso “vencedor”. Aí São Jorge representa o santo ideal. Na novela “Salve, Jorge”
ele é o herói que salva as mulheres traficadas contra o dragão do tráfico
internacional de mulheres.
Por fim, cabe uma observação de ordem filosófica:
seguramente aqueles que veneram São Jorge não saibam nada disso que explanei
acima acerca da coexistência dos dois em nossa vida. Nem precisam saber. Basta
que tenham consciência de que a vida é uma permanente luta entre o que é bom
para mim e para os outros e entre o que é mau que deve ser evitado e combatido.
E acreditar que a virtude é preferível ao vício e que a palavra final terá São
Jorge e não o dragão.
Nessa fé, saímos todos fortalecidos para os embates que
ocorrerão pela vida afora com a assistência ponderosa do guerreiro vencedor São
Jorge.
Fonte: Leonardo Boff, teólogo, filósofo, pesquisador
e escritor.
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