Logo na primeira mordida, Maria Elisa engasgou.
A massa da esfirra “esticadinha” estava seca, quase carbonizada, e o recheio de zátar parecia areia do Saara. Zátar é pó granulado... de tomilho, orégano, manjerona, gergelim torrado, coentro, sumagre, sal e, por vezes, cominho e coentro. Não foi uma boa escolha, foi péssima.
No passado, quando almoçava no Farabbud aos domingos, Maria Elisa pedia, e comia com prazer, a “esticadinha” de carne. E se deliciava!
Mas ela decidiu ser vegetariana. Lera a descrição feita por Tolstói do matadouro da sua cidade de Tula e ficou horrorizada. Está lá, no ensaio “O primeiro degrau”, os detalhes do assassínio sem piedade de animais indefesos e de seu sofrimento, criados e transformados em hambúrguer e churrasco.
Chocada com a barbárie, não hesitava em afirmar que “qualquer pessoa de bom coração diante desse relato também deixaria de se alimentar do cadáver de animais”.
“Não podemos acreditar que, como avestruzes, se não vemos o que não queremos ver não existe. Os animais sofrem, mesmo que alguns produtores alardeiem abate humanitário para que sofram menos”, ela grifava.
Para dar validade sagrada e milenária à opção vegetariana, ela citava um verso do primeiro capítulo de Gênesis. “Vede, eu vos entrego as ervas que dão semente sobre a face de toda a terra; e todas as árvores frutíferas que dão semente vos servirão de alimento.”
Como, então, a humanidade se atrevia a desobedecer às prescrições do Livro da Criação?!
Num instante, Maria Elisa se viu no meio de um fogo cruzado.
Era nítida, entre todos, a passionalidade em favor da necessidade humana de proteína animal e dos prazeres da carne para ser forte e feliz.
Não sem muita discussão, todos tinham algo a dizer na contramão do Criador, com opiniões abalizadas por médicos, nutricionistas, estrelas de Hollywood, influencers famosos, vídeos Tik Tok, o Google, a Wikipédia etc.
Para oficializar o fim da polêmica, Heitor bateu o martelo quando afirmou que a vida não seria normal nem valeria a pena estar vivo para comer um “churrasco” à base de abobrinha, milho, berinjela, brócolis, pimentão e couve-flor. Foi aprovado unanimemente com gargalhadas e aplausos entusiastas.
Chamaram
o garçom e pediram mais uma porção de esfirras de carne, basturma com ovos, quibe
assado, quibe cru, quibe frito, kafta.
Acuada, Maria Elisa se calou, quase acreditando que, talvez, Tolstói tivesse exagerado. Apesar de ser um luminar do universo literário, ele era dado a excessos.
Mas... e quanto ao Criador? Os ensinamentos doutrinários que recebera afirmavam que ele era onisciente.
Decidindo que não era hora nem lugar para se ocupar seriamente desse tema sem dominar os fundamentos necessários, Maria Elisa chamou o garçom e pediu a sobremesa.
Ao chegar em casa, procurando a Bíblia para ler novamente o Gênesis, deu de cara com o livro “Flor de Obsessão: as 100 melhores frases de Nelson Rodrigues”. Uma delas veio de imediato à sua mente. “Toda unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar.”
Foi
dormir conciliada com o Criador e com Tolstói.
LIC
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