A cena é bem simples. Uma senhora idosa, sentada num banquinho, quase tão baixo quanto ela, ao lado da portaria diante do portão de garagem.
Às terças, quintas e aos sábados, quem mora no edifício Veredas a encontra à espera.
Hoje, depois da minha caminhada, eu a vi assim que me aproximei da calçada. Dessa vez, ela não apenas inclinou o tronco e a cabeça em minha direção, sua forma de cumprimentar todos que passam por ela. Sorrindo, me deu uma bala e segurou minha mão por um instante.
Harumi fala um nada no meu idioma e pouco entende, o que impede nossa comunicação com muitas palavras. Agradeci também sorrindo.
Tudo que sei a seu respeito quem me contou foi o porteiro da manhã. “Dona Harumi mora com a filha no 8º andar. Ela tem 99 anos. Fica sentada ali esperando o ônibus da igreja com uma Bíblia descansando no colo. Não falta. Ela anda devagarinho, se apoia na bengala. Pra não se atrasar, chega uma hora antes. De pouco em pouco, ela me chama para saber que horas são.”
São oito e vinte. O ônibus vai passar daqui dez minutos. Sem nada de urgente pra fazer naquela manhã, fiquei por ali. “Esperando ônibus? Vai igreja?” Economizei palavras pra ela me entender.
“Sim,
esperando. Ônibus chega logo. Vai igreja cantar, reza, almoça e depois volta casa”,
ela respondeu.
Não deu pra mais nada. Além de tudo, ela usa aparelho para surdez.
Harumi foi pra igreja. Eu fui pra casa.
Tomei banho e, enquanto preparava meu desjejum, li as mensagens que chegam logo cedo via WhatsApp, geralmente tão óbvias e triviais que aborto principalmente as de autoajuda e mesmo algumas beatas. Não dá para esperar que o dia seja leve, repleto de sorrisos neste efêmero existir. Isso é uma inadequação conjuntural. De imediato, me lembro do Marco Aurélio (o imperador), um homem sensato. Ele tinha os pés no chão quando escreveu “Previne a ti mesmo ao amanhecer: ‘vou encontrar um intrometido, um mal-agradecido, um insolente, um astucioso, um invejoso, um avaro’”. (Meditações, Livro II, 1.)
Mas, naquela manhã, uma dessas mensagens, mesmo sem revelar algo profundo, fez que dona Harumi voltasse à minha tela mental acompanhada de uma questão que filósofos e teólogos discutiram e discutem ainda hoje. “Será que Deus precisa das nossas orações ou nós oramos por uma necessidade humana?”
O rabino Michel Schlesinger diz que os dois precisam. Pois Deus só existe enquanto houver quem espie para cima e busque por ele e nós só existimos enquanto ele olhar para baixo e nos der força para seguir em frente.
Homens e mulheres do povo da Bíblia acreditaram nisso. Diante de infortúnios, nem o grande sábio Salomão nem Sansão com sua força sobre-humana, menos ainda o paciente Jó, dispensaram a existência de Deus. Com os joelhos no chão, foram mais longe do que seus pés os poderiam levar.
Mesmo que sejam personagens de narrativas com conteúdo mítico, eles são porta-vozes da frágil e limitada condição humana diante do panorama geral da vida. Foram e somos vulneráveis às mínimas turbulências. É preciso ter coragem para viver sem Deus.
Estou escrevendo em meu computador diante de uma ampla janela. O pôr do sol se aproxima pintando de alaranjado a imensidão do céu. Num impulso, olho para cima.
E o que
vejo? Dona Harumi. Há bondade no seu olhar. Seus olhos dão a ideia de que a
vida é simples. Tem gente assim, que se apoia no transcendental para levantar a
alma ligada à terra.
LIC
Uma linha ascendente e outra descendente nos ensina o Frei e vamos caminhando. Linda D.Harumi e sua simplicidade, assim a vida deve ser levada.
ResponderExcluirBela crônica, valorizando o essencial e o espiritual, valores básicos para o bem viver.
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