sexta-feira, 11 de julho de 2025

CONFISSÕES

Meu irmão e eu tínhamos a tarefa de limpar a biblioteca de papai uma vez por ano, nas férias de julho.

Tirávamos todos os livros das estantes e, depois de espanar o pó, limpávamos as capas e as lombadas de couro com um produto especial, um a um.

Uma tarefa indigesta, mas que me abriu um canal de comunicação sensorial com os livros. Naquela sala entulhada de volumes, de uma forma misteriosa, eu absorvia sua sabedoria pelo tacto, pelo olfato, pela visão, sem mesmo os ler.

Dizem que os livros encontram seus leitores. Foi assim, na tarde daquele sábado invernal.

Ao abrir o nicho das obras de não ficção, da prateleira inferior, um livro caiu no chão de boca para baixo, com a contracapa à vista.

Por coincidência, no dia anterior, meu pai comentara sobre esse livro quando passamos diante de uma igreja.

Era um dos poucos sem a data da compra, que papai anotava como registro dos seus interesses e experiências de leitura ao longo do tempo.

Estava intacto, sem marcações, trechos destacados ou sentimentos anotados, sem a versão de quem já o lera. Meu pai não lia com um lápis na mão.

Ao desvirá-lo, senti que era um reencontro, pois suas mais de 300 páginas nos afastaram por diversas vezes, até pela profundidade e complexidade da obra.

Coloquei-o na escrivaninha decidido a encará-lo.

Costumo ignorar prefácios e prólogos, desnecessários como os padres e os canudinhos de refresco, pois, como diz o Quintana, “não há nada que substitua a comunicação direta”.

De imediato, fui ao início da vida terrena do autor e personagem principal. Sim, era uma autobiografia. Ou um mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa?!

As páginas estavam mergulhadas num amargo arrependimento por quantos e quão grandes erros ele se afeiçoara desde a infância. “Sem dúvida, então o meu procedimento era repreensível (...) era seduzido e seduzia, era enganado e enganava.”

Como o publicano, que nem ousava levantar os olhos para o céu, também ele pedia misericórdia. “Compadecei-vos, para que possa falar!”

Tateando por caminhos escorregadiços que lhe davam respostas insatisfatórias a questões da realidade humana, precipitou-se na confusão, no erro e na dor. “Naquelas bandejas serviam-me então ficções brilhantes!”

“Chegado já aos trinta anos, continuava ainda preso ao lodo de gozar dos bens presentes que fugiam e me dissipavam”, confessou, sentindo o tempo passar sem alcançar o que ansiava.

Certo dia, porém, no jardim de sua residência em Milão, Agostinho pareceu ouvir alguém repetindo “Tolle et lege” (Toma e lê). Viu à sua frente um livro aberto e, ao ler a mensagem que lhe saltou aos olhos...

Caro leitor, não vou dar spoiler. Leia o livro. Talvez, ele esteja procurando por você. 

LIC

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