Meu
irmão e eu tínhamos a tarefa de limpar a biblioteca de papai uma vez por ano, nas
férias de julho.
Tirávamos
todos os livros das estantes e, depois de espanar o pó, limpávamos as capas e as
lombadas de couro com um produto especial, um a um.
Uma
tarefa indigesta, mas que me abriu um canal de comunicação sensorial com os
livros. Naquela sala entulhada de volumes, de uma forma misteriosa, eu absorvia
sua sabedoria pelo tacto, pelo olfato, pela visão, sem mesmo os ler.
Dizem
que os livros encontram seus leitores. Foi assim, na tarde daquele sábado
invernal.
Ao
abrir o nicho das obras de não ficção, da prateleira inferior, um livro caiu no
chão de boca para baixo, com a contracapa à vista.
Por
coincidência, no dia anterior, meu pai comentara sobre esse livro quando
passamos diante de uma igreja.
Era
um dos poucos sem a data da compra, que papai anotava como registro dos seus
interesses e experiências de leitura ao longo do tempo.
Estava
intacto, sem marcações, trechos destacados ou sentimentos anotados, sem a
versão de quem já o lera. Meu pai não lia com um lápis na mão.
Ao
desvirá-lo, senti que era um reencontro, pois suas mais de 300 páginas nos
afastaram por diversas vezes, até pela profundidade e complexidade da obra.
Coloquei-o
na escrivaninha decidido a encará-lo.
Costumo
ignorar prefácios e prólogos, desnecessários como os padres e os canudinhos de refresco,
pois, como diz o Quintana, “não há nada que substitua a comunicação direta”.
De
imediato, fui ao início da vida terrena do autor e personagem principal. Sim,
era uma autobiografia. Ou um mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa?!
As
páginas estavam mergulhadas num amargo arrependimento por quantos e quão
grandes erros ele se afeiçoara desde a infância. “Sem dúvida, então o meu
procedimento era repreensível (...) era seduzido e seduzia, era enganado e
enganava.”
Como
o publicano, que nem ousava levantar os olhos para o céu, também ele pedia
misericórdia. “Compadecei-vos, para que possa falar!”
Tateando
por caminhos escorregadiços que lhe davam respostas insatisfatórias a questões
da realidade humana, precipitou-se na confusão, no erro e na dor. “Naquelas
bandejas serviam-me então ficções brilhantes!”
“Chegado
já aos trinta anos, continuava ainda preso ao lodo de gozar dos bens presentes
que fugiam e me dissipavam”, confessou, sentindo o tempo passar sem alcançar o que
ansiava.
Certo dia, porém, no jardim de sua residência em Milão, Agostinho pareceu ouvir alguém
repetindo “Tolle et lege” (Toma e lê). Viu à sua frente um livro aberto e, ao
ler a mensagem que lhe saltou aos olhos...
Caro leitor, não
vou dar spoiler. Leia o livro. Talvez, ele esteja procurando por você.
LIC
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