Felícia tinha conexão com aquela santa por motivos de parentesco. Uma antiga tradição de família afirmava que eram primas por uma linha transversal de terceiro grau.
Herdara esse legado religioso a que dedicava especial veneração e com quem tinha uma relação de cumplicidade, com boas doses de interesse pessoal.
Cumpria a prática contratual romana baseada no princípio do ut des, “dou para que dês”. Aproveitava assim, promiscuamente, a devoção e a irreligião, sem desacreditar do Criador.
Se faltava dinheiro na associação dos filhos de aidéticos que ela mantinha, Felícia entrava em contato com a prima. Sem mais nem menos, aparecia um doador!
Se estava no centro da cidade, às 18h de um dia chuvoso, lhe pedia um táxi. Em poucos minutos, um taxista estacionava aos seus pés desembarcando um passageiro.
Quando perdia os óculos, era para a prima que recorria, muito mais eficiente que São Longuinho. De pronto encontrava e nem precisava dar os três pulinhos. Pois a santa nunca lhe pediu nada como contrapartida nem lhe pedia paga antecipada. Afinal, ela não era qualquer parenta.
Mas, como fidedigna pagadora de promessas, Felícia sempre retribuía pelos obséquios. Cumpria mesmo que lhe custasse deixar de comer farofa, seu prato predileto, por um ano, ou peregrinar para um lugar santo a pé, ou se vestir com os trajes da santa na data da sua morte, dia de festa.
Era nessa comemoração que vinha lhe pedindo algo especial há anos, ainda que se sentisse naturalmente merecedora. “Prima, o matrimônio é minha alma e vocação, sei que nasci para isso.” Mesmo assim, pela força do hábito, prometia. “Em sua homenagem, minha filha terá seu nome.”
A cada ano, pedia com mais ardor, pois Felícia estava se aproximando da meia-idade. “É melhor não prometer nada do que fazer uma promessa e não cumprir. Não deixe que as suas próprias palavras o façam pecar”, aprendera lendo a trajetória de santidade da prima.
Nessa festividade separava um cantinho da sala onde morava com a mãe viúva para colocar a imagem da prima no oratório de madeira decorado com rosinhas de rococó.
Organizava um encontro com os sobrinhos para lhes contar fatos da vida da santa com a promessa de cachorro quente e do bolo de chocolate com cobertura de brigadeiro que todos amavam. Nesse contrato comutativo, o toma lá da cá era consentido sem-vergonha pelas partes envolvidas. Ninguém era santo.
Naquele dia daquele ano, estava mais feliz do que em todos os outros. Com mais gratidão do que nunca, celebraria a prima por lhe ter facilitado o que vinha pedindo ano após ano. Casaria no próximo mês.
Logo cedo saiu para comprar as flores que enfeitariam aquele espacinho da casa e os ingredientes para o bolo.
Mas como a vida tem suas encruzilhadas, Felícia se encontrou diante de uma da qual não teve tempo de escolher direção. Se tem uma coisa que a vida nos ensina, é que nem tudo sai como planejamos.
Vinha andando, com a cabeça nas nuvens, revivendo o que vivera até então e antevendo o que poderia viver depois do casamento.
No Boletim de Ocorrência registraram atropelamento com morte súbita e omissão de socorro.
Foi enterrada vestida de noiva naquele mesmo dia do
onomástico da prima santa.
LIC
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