segunda-feira, 25 de agosto de 2025

UMA CASA REAL

 

“Ainda não.” Assim Mateo respondia quando lhe sugeriam uma visita àquele santuário afirmando ser o maior do mundo. Mesmo crente em Deus, ele não sofria de religião. Na época certa, foi levado à igreja e não se interessou por nada daquilo. Mas quando as coisas não iam bem, esquecia que era incrédulo e rezava em segredo.

Naquele dia, Mateo esteve lá por uma boa razão e por uma razão verdadeira.

Isabel, de quem estava apaixonado, o convidara. E, ultimamente, inquietações o impulsionavam a se envolver com o além do palpável. Cansara de perguntar aos seus botões sobre a irracionalidade da vida.

Isabel garantiu que seria uma visita monitorada, afirmando que no templo, a começar da estrutura e dos tijolos, tudo tinha uma razão de ser: imagens, formas e formatos, contornos, cores e tons, painéis, vitrais e mosaicos. “Nem um só prego foi colocado sem um sentido teológico, litúrgico e mistagógico. Muitos vêm com um fundo de bom sentimento e de interesse pessoal, em busca de graças, e nem lhes prestam atenção”, ela comentou.

Chegaram ao Santuário a tempo de passar diante da pequena imagem negra. Retirada das águas do rio Paraíba do Sul por três pescadores, ela realizou um primeiro milagre, o da pesca abundante. “E continua realizando eventos extraordinários; depois vou levar você até a Sala das Promessas”, Isabel prometeu.

“Tia Lavínia fez muitas”, Mateo lembrou. “Pela saúde do marido tísico, por um bom casamento para a filha, por um emprego para o filho alcoólatra, por conflitos familiares etc.”

Na hora agendada, encontraram Alice, a guia. “Vamos entrar pela nave norte através desta majestosa porta em bronze, a Porta Santa, aberta por ser um ano jubilar”.  Mateo não fazia a mínima ideia do que isso significava. Nem sequer se atreveu a perguntar diante da reverência e silêncio com que Alice os fez atravessar o portal.

Durante hora e meia, Alice apresentou em minúcias a arte e a arquitetura da área central, um espaço sagrado sem janelas e tantas portas, onde grandes colunas sustentam, envolvem e protegem o altar principal coroado pela Cúpula Central.

Apontando para o alto, ela continuou. “Lá está a Árvore da Vida, a que brotou do pequeno grão de mostarda, onde as aves vêm fazer seus ninhos. Lembram da parábola?”, ela perguntou. Mateo, ao ouvir “mostarda”, só lhe veio ao pensamento o tempero que colocava no hot-dog. Tomado de assalto por resquícios da sua herança religiosa, alguém dentro dele fez um sermão e o censurou.

“É de lá, a oito metros de altura, que desce a Cruz do Nada, com o corpo vazado de quem é a centralidade do mundo ocidental cristão, o Messias, Cristo Jesus. Observada dos corredores laterais, ela desaparece, remetendo à passagem bíblica do enigma da fé, acreditar sem ver”, Alice acrescentou.

“Sim, como minha mãe”, Mateo recordou. “Ela dizia que a ignorância humana não tem limites, mas a fé firme e certa em Deus e sua sapiência oferecem respostas tranquilizadoras sobre a existência, a vida, a morte e nosso lugar no universo.”  

Foi então que Alice pediu que inclinassem a cabeça e baixassem o olhar. Minando do altar, o desenho em ziguezague de ondas de água em movimento “escorria” sob seus pés, aumentando progressivamente até um metro e meio pelo granito das paredes, fluindo pelas arcadas externas. “Até o piso tem teologia. Essas águas lembram a visão do profeta Ezequiel”, Isabel sussurrou.

Mateo ignorava a que ela se referia. Só lembrou que Ezequiel era o nome do zelador do seu prédio. Mais uma vez alguém dentro dele fez um sermão e o censurou.

Com o desejo de conferir onde aquelas ondas cravadas no chão o levariam, Mateo se afastou de Isabel e, já no exterior da Basílica, seguiu-as.

Chegou ao ponto de partida, diante da pequena imagem negra. Um jovem, com as mãos unidas e os olhos voltados para cima, rezava ajoelhado diante do nicho. Mateo se deteve e, curioso, apurou os ouvidos para escutar a prece que ele sussurrava a Maria. “Concedei-me que eu volte a ser irmão do vosso menino.”

Impactado pela súplica e sem se dar conta, Mateo repetiu o que ouvira, de joelhos.

Milagre? Quando não se tem fé, não se vê os milagres.

LIC


 

terça-feira, 29 de julho de 2025

ÀS DUAS HORAS DA TARDE DE DOMINGO

 

 

Diante da folha em branco, caneta em punho, minha atenção foi despertada. O relógio do campanário marcou o tempo presente, o que era naquele instante. Duas horas da tarde de domingo.

Minha memória despertou. Foi de repente, como ela surge, desencadeada pelo som do piano da vizinha que insistia em tocar uma escala com agilidade e precisão. Trouxe um outro domingo às duas horas da tarde.

Morávamos em um sobrado geminado que, até onde posso lembrar, era herança do meu avô materno.

Um portão grande servia para a entrada de carros. O menor, para entrarmos. O restante era muro alto. Da rua para o quintal, havia um jardim sem flores e uma varanda imediata à sala de estar decorada com um sofá de quatro lugares e uma poltrona, tudo em courvin marrom, encostados na parede, de frente para a televisão. A mesinha de centro diariamente era ocupada pelo jornal que meu pai espalhava depois de lido.   

A sala de jantar estava entulhada com móveis antigos – um buffet, uma cristaleira, o barzinho e uma mesa com seis cadeiras em pau-marfim descaracterizado pelas inúmeras vezes que minha mãe lixara e envernizara a madeira. Sobre essa mesa, colocaram o caixão com o corpo da minha avó materna e lá fizemos seu velório. 

Uma porta dava acesso à copa e cozinha com tudo, absolutamente tudo – mesa, cadeiras, armários – revestido de fórmica vermelha brilhante. A geladeira também era vermelha, tendência pop dos anos 70.

Seguindo em direção ao quintal, tinha o quarto de empregada e um banheiro pequeno que todos usavam durante o dia.

A porta da cozinha se abria para o quintal com piso de cacos de cerâmica. Um canteiro estreito, onde cresciam trepadeiras – uma videira, um pé de maracujá e um de chuchu, ladeava a parede que separava a nossa da casa do vizinho. De lá saiam as formigas e os tatus bolinhas que meu irmão pegava e torturava de todos os modos que se pode conceber e por tempo sem fim.

No andar superior, para onde se chegava por uma escada de dezesseis degraus, que eu repetidamente contava tantas fossem as vezes que subisse ou descesse, tinha um banheiro com chuveiro e banheira que ninguém usava – tomávamos banho de pé dentro dela – três quartos, uma sacada aberta para a rua da frente e outra para os fundos, para o quintal.

A casa ressonava. Meus pais cochilavam no sofá, segundo o costume no domingo, e meu irmão saíra para algum lugar onde havia amigos e diversão.

Eu estava na cozinha, lavando a louça do almoço, panelas, travessas, pratos, talheres espalhados sobre a pia e o fogão. Minha mãe fizera o almoço às pressas entre as idas e vindas da feira nas ruas próximas, sem tempo para limpar o que sujava.

Tocaram a campainha. Meu pai acordou e foi atender aquele homem corpulento vestido com aprumo, de rosto e nariz franzidos que faziam pensar num buldogue. Era um agiota, soube no dia seguinte.

Notei que meu pai, acabrunhado, entrou e, à indagação da mamãe, disse que viriam buscar o piano. A dívida crescera e ficara impossível de pagar.

Sim, antes da televisão, existira aquele piano na nossa sala de estar.

LIC