sexta-feira, 4 de julho de 2025

CASSANDRA


Valentina vivia um casamento infeliz de há muito tempo.

Naquele vigésimo quarto ano, decidiu não comemorar as Bodas de Prata. Deu um basta ao conselho da avó que, em última instância, chegou à sentença final. “Ruim com ele, pior sem ele”.

Por conseguinte, se submeteu a Freud, frequentou workshops xamânicos, se banhou em cachoeiras indígenas e tatuou uma palavra védica atrás da orelha. “Um bom lugar para escondê-la, para que nem meu esposo nem meu filho vejam”, Valentina se justificou com o terapeuta.  

Com uma herança de crendices incutidas pela mãe, que lhe repetia casos extraordinários, acreditava em tudo diante do mistério da vida, no inexplicável de tantos acontecimentos inimagináveis. “Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”, Valentina explicou ao terapeuta.

Ao fim e ao cabo, aceitou a sugestão da Cassandra, uma amiga de infância. “Procure a cartomancia. Madame Janette viu o nascimento do meu filho antes mesmo de eu saber que estava grávida. Ela é profissional da área há dez anos, tem clientes até nos Estados Unidos e no resto do mundo, e muitos são influencers famosos.”

Na tarde daquela fria sexta-feira de julho, Valentina foi consultá-la. Ao entrar no quarto rodeado de cortinas escuras cobrindo as janelas, ela procurava respostas que aliviassem a frustração presente e a ansiedade em saber o que a vida lhe reservava, mesmo temendo o desconhecido.

Madame Janette era uma mulher de cinquenta anos, nariz e sotaque eurasianos, olhos verdes-esmeraldas com uma aura de escuridão e astúcia. 

Convidou Valentina para sentar e sentou-se do lado oposto da sua mesa de trabalho posicionada no centro da sala, coberta por uma toalha vermelha com símbolos místicos, onde estavam expostos cristais, velas acesas, incensos de limpeza e proteção. Abriu uma gaveta e tirou um baralho.

Com o coração vibrando como uma britadeira, Valentina não desgrudava os olhos de Madame Janette, ansiosa pelo que viria.

A cartomante começou a baralhar as cartas, baralhou-as bem, dividiu-as em três maços que transpôs três vezes, combinou-os, começou a estender as cartas viradas para baixo em formato de leque e pediu que Valentina escolhesse uma. Repetiu três vezes esse ritual e Valentina escolheu uma carta a cada uma dessas três vezes. A sorte fora lançada.

“As cartas me dizem que você não precisa ter medo. Sua gravidez será gemelar de meninas.”

Como daí a Valentina chegou ou não às Bodas de Prata eu não soube nunca.

Perdi contato com a Cassandra quando fui trabalhar na sucursal de Roma em agosto.

LIC

segunda-feira, 30 de junho de 2025

"FAMÍLIA"

Naquele dia, o encontro aconteceu por acaso durante o passeio matinal na pracinha.

O cachorro de João Pedro avançou rosnando pra Lulu da Pomerânia da Maria Clara, tipo criança mostrando a língua para outra criança.

“Ermenegildoooo, quieto!” João Pedro, puxando a coleira com energia, se desculpou.

Maria Clara sorriu, pegou a Bebel no colo e a conversa começou.  

“Qual a raça dele?”

“É um fox paulistinha, um bom cão de guarda apesar do tamanho”, respondeu João Pedro.

“Tamanho não é documento, não é mesmo?”, Maria Clara gentilmente concluiu.

A conversa foi se estendendo para variáveis ditos e comentários, alguns até menos caninos, mas digeridos sem esforço. Enquanto isso, Bebel e Ermenegildo ensaiavam uma socialização olfativa.

A partir de então, Maria Clara e João Pedro começaram a se encontrar todos os dias naquele mesmo local e horário.

Pouco a pouco, Maria Clara foi sentindo que João Pedro era um marido aceitável e vice-versa. Concordes no amor soberano aos quadrúpedes, não desejavam transmitir a nenhuma criatura o legado da miséria humana. O Brás Cubas do Machado, que ambos também amavam, os aprovaria além-túmulo.

João Pedro beirava os 50. Maria Clara contava 32. O casamento não tardou acontecer – onze meses depois.

E a linha hereditária se fez por uma linhagem canina: Bebel pariu duas Lulus da Pomerânia. Ermenegildo fecundou diversas fox paulistinhas, mas as gestações não se concluíram, resultando em abortos por causas não identificadas.

O casal registrou em um cartório virtual a certidão de nascimento das crias que vingaram com nome e sobrenome.

Com acesso irrestrito aos aposentos do interior da casa, camas aconchegantes no quarto do casal, toneladas de brinquedos nas festinhas de aniversário, todos participavam da rotina familiar e das visitas dominicais aos "avós". O casal só se hospedava em hotéis que aceitassem pets e passaram a frequentar tão somente restaurantes inclusivos.

Até que... Nero chegou, um mestiço vira-lata com pastor alemão.

Nero tinha um histórico de rejeição. Não encontrava um lar nos eventos de adoção do abrigo que João Pedro seguia e apoiava.

João Pedro, desolado por Ermenegildo não ter lhe dado descendência, finalizou a adoção. "Nero", pensou ele, "é um vira-lata, têm genes provados e testados nas agruras da vida, será um bom reprodutor".

Mas... o que ele não sabia é que Nero tinha um perfil comportamental marcante, sequela das agruras da vida. Foram necessários seis meses de visitas ao médico acupunturista, com aplicações semanais de 40 agulhas, da cabeça ao rabo, para liberação de neurotransmissores que aliviassem suas tensões e as marcas profundas causadas pela síndrome do abandono.

João Pedro, mesmo assim, apostando numa possível descendência a partir de Nero, passou a lhe dar precedência de atendimento, tempo e lugar.

Os efeitos não se fizeram tardar. 

Maria Clara, sua "filha", as duas "netas" e também o "enteado" Ermenegildo, sentindo-se cada vez mais preteridos, pediram o divórcio. Chegou à Justiça com litígio e contrato sobre a guarda, os dias e horários de visitação dos "filhos" para garantir o direito de convivência com os "pais", um ano depois da chegada de Nero.

Não sei como foi a vida dessa "família" daí em diante, mas continuo engajada na causa humana.

LIC