segunda-feira, 29 de setembro de 2025

QUE SABEMOS NÓS?

Foi em julho deste ano. Para comemorar meu aniversário, planejei uma viagem solo à Itália. Com acesso fácil a mares, a parte sul do “país da bota” era o lugar ideal. Banhada pelo Adriático, o Jônico e o Tirreno, o verão fica suave por lá. Meu plano era explorar a Costa Amalfitana.

Com tudo planejado até o último detalhe, embarquei para Roma, ponto de partida para a conexão ao aeroporto Capodichino, em Nápoles, a primeira parada do roteiro. As forças que favorecem os metódicos, focados e previdentes também favoreceriam minha estadia em Nápoles, uma cidade com a péssima reputação de ser uma das menos seguras da Itália. Já estivera por lá anos atrás, sabia disso, e o ChatGPT confirmou esse cenário.

Sim, recorri à inteligência artificial para estar a salvo de perigos e intempéries com zero probabilidades de ocorrências nefastas. Baixei o aplicativo de fonte confiável que me garantiu respostas com informações sobre clima e segurança claras, pontuais, assertivas sem delongas.

Ao religar meu celular assim que aterrissamos, recebi de Enzo Santoro, o motorista que eu contratara, a confirmação da corrida à Residenza Neri, em Posillipo.

O ChatGTP comentara sobre o trânsito caótico de Nápoles, mas ficou muito longe da realidade dos motoristas napolitanos. Eles são “loucos”, ousados, imprudentes, indisciplinados. Circulam pelas ruas, mesmo as mais estreitas, em alta velocidade.

Enzo, um jovem napolitano, seguia o padrão. Por 15 km, dirigiu como se estivesse testando uma Ferrari em pista de corrida. Minha imaginação, por natureza ilimitada, começou a funcionar imediatamente: invalidez permanente ou morte imediata após um acidente de capotamento.  

Grazie a Dio, chegamos ilesos ao hotel. Ainda atarantado, praguejei contra a inteligência limitada do ChatGPT quanto a eventos aleatórios, eventuais, fortuitos.

Registrei minha chegada, recebi a chave do quarto e dispensei o jantar. Precisava apenas de um banho e o alívio de uma cama. Amanhecia quando comecei a dormir. Acordei para o almoço, com o estômago roncando.  

O dia estava quente e úmido. Na necessidade de sentir que caminhava sobre solo firme num bairro seguro, saí para caminhar. Posillipo é uma área residencial nobre, tranquila, acima do caótico centro histórico napolitano.

Mas fui surpreendido pela velocidade mais uma vez. 

 Ehi, attento!

Ao tentar atravessar a rua, quase fui atropelado por uma Vespa. Pulei para a calçada e me encostei no muro da residência mais próxima. Ao desviar de mim, a moto colidiu com o carro da frente e o motociclista foi arremessado para longe. Ouvi o barulho metálico do choque.

O trânsito parou e muitas pessoas acorreram ao local. Também me aproximei e reconheci o jovem napolitano que me trouxera do aeroporto. “È morto!”, diziam. Não esperei para ver confirmada a sentença.

À noite, peguei o trem na estação central de Nápoles para seguir viagem.  

Muitas vezes ouvi céticos usarem a palavra “improvável”, mas aprendi que muito do que consideramos impossível acontece todo dia. Nem a realidade nem o ChatGPT dão conta do inesperado.

LIC

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

UMA CASA REAL

 

“Ainda não.” Assim Mateo respondia quando lhe sugeriam uma visita àquele santuário afirmando ser o maior do mundo. Mesmo crente em Deus, ele não sofria de religião. Na época certa, foi levado à igreja e não se interessou por nada daquilo. Mas quando as coisas não iam bem, esquecia que era incrédulo e rezava em segredo.

Naquele dia, Mateo esteve lá por uma boa razão e por uma razão verdadeira.

Isabel, de quem estava apaixonado, o convidara. E, ultimamente, inquietações o impulsionavam a se envolver com o além do palpável. Cansara de perguntar aos seus botões sobre a irracionalidade da vida.

Isabel garantiu que seria uma visita monitorada, afirmando que no templo, a começar da estrutura e dos tijolos, tudo tinha uma razão de ser: imagens, formas e formatos, contornos, cores e tons, painéis, vitrais e mosaicos. “Nem um só prego foi colocado sem um sentido teológico, litúrgico e mistagógico. Muitos vêm com um fundo de bom sentimento e de interesse pessoal, em busca de graças, e nem lhes prestam atenção”, ela comentou.

Chegaram ao Santuário a tempo de passar diante da pequena imagem negra. Retirada das águas do rio Paraíba do Sul por três pescadores, ela realizou um primeiro milagre, o da pesca abundante. “E continua realizando eventos extraordinários; depois vou levar você até a Sala das Promessas”, Isabel prometeu.

“Tia Lavínia fez muitas”, Mateo lembrou. “Pela saúde do marido tísico, por um bom casamento para a filha, por um emprego para o filho alcoólatra, por conflitos familiares etc.”

Na hora agendada, encontraram Alice, a guia. “Vamos entrar pela nave norte através desta majestosa porta em bronze, a Porta Santa, aberta por ser um ano jubilar”.  Mateo não fazia a mínima ideia do que isso significava. Nem sequer se atreveu a perguntar diante da reverência e silêncio com que Alice os fez atravessar o portal.

Durante hora e meia, Alice apresentou em minúcias a arte e a arquitetura da área central, um espaço sagrado sem janelas e tantas portas, onde grandes colunas sustentam, envolvem e protegem o altar principal coroado pela Cúpula Central.

Apontando para o alto, ela continuou. “Lá está a Árvore da Vida, a que brotou do pequeno grão de mostarda, onde as aves vêm fazer seus ninhos. Lembram da parábola?”, ela perguntou. Mateo, ao ouvir “mostarda”, só lhe veio ao pensamento o tempero que colocava no hot-dog. Tomado de assalto por resquícios da sua herança religiosa, alguém dentro dele fez um sermão e o censurou.

“É de lá, a oito metros de altura, que desce a Cruz do Nada, com o corpo vazado de quem é a centralidade do mundo ocidental cristão, o Messias, Cristo Jesus. Observada dos corredores laterais, ela desaparece, remetendo à passagem bíblica do enigma da fé, acreditar sem ver”, Alice acrescentou.

“Sim, como minha mãe”, Mateo recordou. “Ela dizia que a ignorância humana não tem limites, mas a fé firme e certa em Deus e sua sapiência oferecem respostas tranquilizadoras sobre a existência, a vida, a morte e nosso lugar no universo.”  

Foi então que Alice pediu que inclinassem a cabeça e baixassem o olhar. Minando do altar, o desenho em ziguezague de ondas de água em movimento “escorria” sob seus pés, aumentando progressivamente até um metro e meio pelo granito das paredes, fluindo pelas arcadas externas. “Até o piso tem teologia. Essas águas lembram a visão do profeta Ezequiel”, Isabel sussurrou.

Mateo ignorava a que ela se referia. Só lembrou que Ezequiel era o nome do zelador do seu prédio. Mais uma vez alguém dentro dele fez um sermão e o censurou.

Com o desejo de conferir onde aquelas ondas cravadas no chão o levariam, Mateo se afastou de Isabel e, já no exterior da Basílica, seguiu-as.

Chegou ao ponto de partida, diante da pequena imagem negra. Um jovem, com as mãos unidas e os olhos voltados para cima, rezava ajoelhado diante do nicho. Mateo se deteve e, curioso, apurou os ouvidos para escutar a prece que ele sussurrava a Maria. “Concedei-me que eu volte a ser irmão do vosso menino.”

Impactado pela súplica e sem se dar conta, Mateo repetiu o que ouvira, de joelhos.

Milagre? Quando não se tem fé, não se vê os milagres.

LIC