terça-feira, 29 de julho de 2025

ÀS DUAS HORAS DA TARDE DE DOMINGO

 

 

Diante da folha em branco, caneta em punho, minha atenção foi despertada. O relógio do campanário marcou o tempo presente, o que era naquele instante. Duas horas da tarde de domingo.

Minha memória despertou. Foi de repente, como ela surge, desencadeada pelo som do piano da vizinha que insistia em tocar uma escala com agilidade e precisão. Trouxe um outro domingo às duas horas da tarde.

Morávamos em um sobrado geminado que, até onde posso lembrar, era herança do meu avô materno.

Um portão grande servia para a entrada de carros. O menor, para entrarmos. O restante era muro alto. Da rua para o quintal, havia um jardim sem flores e uma varanda imediata à sala de estar decorada com um sofá de quatro lugares e uma poltrona, tudo em courvin marrom, encostados na parede, de frente para a televisão. A mesinha de centro diariamente era ocupada pelo jornal que meu pai espalhava depois de lido.   

A sala de jantar estava entulhada com móveis antigos – um buffet, uma cristaleira, o barzinho e uma mesa com seis cadeiras em pau-marfim descaracterizado pelas inúmeras vezes que minha mãe lixara e envernizara a madeira. Sobre essa mesa, colocaram o caixão com o corpo da minha avó materna e lá fizemos seu velório. 

Uma porta dava acesso à copa e cozinha com tudo, absolutamente tudo – mesa, cadeiras, armários – revestido de fórmica vermelha brilhante. A geladeira também era vermelha, tendência pop dos anos 70.

Seguindo em direção ao quintal, tinha o quarto de empregada e um banheiro pequeno que todos usavam durante o dia.

A porta da cozinha se abria para o quintal com piso de cacos de cerâmica. Um canteiro estreito, onde cresciam trepadeiras – uma videira, um pé de maracujá e um de chuchu, ladeava a parede que separava a nossa da casa do vizinho. De lá saiam as formigas e os tatus bolinhas que meu irmão pegava e torturava de todos os modos que se pode conceber e por tempo sem fim.

No andar superior, para onde se chegava por uma escada de dezesseis degraus, que eu repetidamente contava tantas fossem as vezes que subisse ou descesse, tinha um banheiro com chuveiro e banheira que ninguém usava – tomávamos banho de pé dentro dela – três quartos, uma sacada aberta para a rua da frente e outra para os fundos, para o quintal.

A casa ressonava. Meus pais cochilavam no sofá, segundo o costume no domingo, e meu irmão saíra para algum lugar onde havia amigos e diversão.

Eu estava na cozinha, lavando a louça do almoço, panelas, travessas, pratos, talheres espalhados sobre a pia e o fogão. Minha mãe fizera o almoço às pressas entre as idas e vindas da feira nas ruas próximas, sem tempo para limpar o que sujava.

Tocaram a campainha. Meu pai acordou e foi atender aquele homem corpulento vestido com aprumo, de rosto e nariz franzidos que faziam pensar num buldogue. Era um agiota, soube no dia seguinte.

Notei que meu pai, acabrunhado, entrou e, à indagação da mamãe, disse que viriam buscar o piano. A dívida crescera e ficara impossível de pagar.

Sim, antes da televisão, existira aquele piano na nossa sala de estar.

LIC

 


sexta-feira, 11 de julho de 2025

CONFISSÕES

Meu irmão e eu tínhamos a tarefa de limpar a biblioteca de papai uma vez por ano, nas férias de julho.

Tirávamos todos os livros das estantes e, depois de espanar o pó, limpávamos as capas e as lombadas de couro com um produto especial, um a um.

Uma tarefa indigesta, mas que me abriu um canal de comunicação sensorial com os livros. Naquela sala entulhada de volumes, de uma forma misteriosa, eu absorvia sua sabedoria pelo tacto, pelo olfato, pela visão, sem mesmo os ler.

Dizem que os livros encontram seus leitores. Foi assim, na tarde daquele sábado invernal.

Ao abrir o nicho das obras de não ficção, da prateleira inferior, um livro caiu no chão de boca para baixo, com a contracapa à vista.

Por coincidência, no dia anterior, meu pai comentara sobre esse livro quando passamos diante de uma igreja.

Era um dos poucos sem a data da compra, que papai anotava como registro dos seus interesses e experiências de leitura ao longo do tempo.

Estava intacto, sem marcações, trechos destacados ou sentimentos anotados, sem a versão de quem já o lera. Meu pai não lia com um lápis na mão.

Ao desvirá-lo, senti que era um reencontro, pois suas mais de 300 páginas nos afastaram por diversas vezes, até pela profundidade e complexidade da obra.

Coloquei-o na escrivaninha decidido a encará-lo.

Costumo ignorar prefácios e prólogos, desnecessários como os padres e os canudinhos de refresco, pois, como diz o Quintana, “não há nada que substitua a comunicação direta”.

De imediato, fui ao início da vida terrena do autor e personagem principal. Sim, era uma autobiografia. Ou um mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa?!

As páginas estavam mergulhadas num amargo arrependimento por quantos e quão grandes erros ele se afeiçoara desde a infância. “Sem dúvida, então o meu procedimento era repreensível (...) era seduzido e seduzia, era enganado e enganava.”

Como o publicano, que nem ousava levantar os olhos para o céu, também ele pedia misericórdia. “Compadecei-vos, para que possa falar!”

Tateando por caminhos escorregadiços que lhe davam respostas insatisfatórias a questões da realidade humana, precipitou-se na confusão, no erro e na dor. “Naquelas bandejas serviam-me então ficções brilhantes!”

“Chegado já aos trinta anos, continuava ainda preso ao lodo de gozar dos bens presentes que fugiam e me dissipavam”, confessou, sentindo o tempo passar sem alcançar o que ansiava.

Certo dia, porém, no jardim de sua residência em Milão, Agostinho pareceu ouvir alguém repetindo “Tolle et lege” (Toma e lê). Viu à sua frente um livro aberto e, ao ler a mensagem que lhe saltou aos olhos...

Caro leitor, não vou dar spoiler. Leia o livro. Talvez, ele esteja procurando por você. 

LIC