segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

METANOIA

O louvor matinal, marcado para as 8 horas de todos os dias, começaria em cinco minutos. A sala estava vazia.

Pensei que estivesse. 

Ele já estava lá, sentado diante do piano elétrico, atento às partituras do hinário, com as mãos delgadas como um fio sobre o teclado.

Minha impressão foi a mesma da noite anterior quando o capelão o apresentou. “Este é o Francisco, musicista, que vive de música, mas ainda não vive da música.”

Alto, magro, tronco e membros longos, um rosto harmonioso coberto pela barba branca, parecia um sabugo de milho, como o Visconde, aquele grande sábio do Sítio do Pica-Pau Amarelo.

Nesta manhã, vestia camisa branca de manga longa com o colarinho abotoado desde o pescoço, calça social preta enrugada sobre o sapato, desajustada ao comprimento das pernas.

Na sequência do seu bom dia, que me ofereceu sorridente esbugalhando os dentes alvos e afilados, soube porque ele estava ali.

“Hoje, o capelão fará o sermão na igreja. Vou substitui-lo. Podemos aguardar uns minutos até que os outros cheguem?”

Concordei, surpresa ao descobrir que ele não era um dos hóspedes. 

“O senhor é pastor?”, perguntei.

“Ainda não. Sirvo como missionário voluntário onde for preciso.”

E, nos breves minutos que esperamos, Francisco contou que, quando jovem, vivera de exageros, bebendo, jogando e frequentando prostitutas e o submundo, sem eira nem beira, sem regras nem fronteiras.

“Mas, um dia, me deparei com o louco da minha cidade vestido e calçado, limpo e penteado, pregando a Palavra no coreto da praça. Ele era doido mesmo, de atirar pedra. Andava imundo, vagando pelas ruas, gritando impropérios.

“Admirei e fui atrás pra saber o acontecido, porque eu também vagava a esmo. Assisti a pregação, me converti, passei a acreditar.”

“Acreditar no quê?”, perguntei.

Ele não teve tempo de responder. Outros hóspedes chegaram e Francisco iniciou o culto.

Pensei que teríamos momentos fora dali pra conversar, pois eu ficaria hospedada ainda por um tempo e, soube depois, ele era o jardineiro do Retiro.

Não tivemos.

No restante dos dias em que estive por lá, nossos caminhos se cruzaram por diversas vezes.

Ele, sempre cuidando dos jardins. Eram muitos e, por ser um período chuvoso, a grama exigia poda constante. Eu, “atarefada” com as mil e uma atividades pra completar minha desintoxicação orgânica.

Chegada a hora de partir, uma chuva diluviana naquele dia me impediu de ir até o carro com a bagagem. Meu quarto ficava na parte externa do prédio.

Pedi na recepção um guarda-chuva e alguém para levar as malas.

Francisco apareceu.

“Além de missionário, você também é pau pra toda obra”, comentei, não surpresa porque já vira Francisco levando um colchão nas costas de um quarto para outro.

Ele sorriu e caminhamos em silêncio até o estacionamento.

Com tudo ajeitado no porta-malas, na despedida, Francisco me disse: “Sabe, dona Perpétua, se as coisas neste mundo ainda não desandaram de vez, é porque o Céu sustenta a Terra. Foi essa certeza que me salvou.”

O aguaceiro que enfrentei estrada afora somado ao que Francisco dissera me fizeram lembrar da história bíblica de Noé.

Como Francisco, a Arca de madeira esteve à deriva, mas sobreviveu ao mau tempo. Sim, aquela foi a primeira de inúmeras vezes em que o Céu sustentou a Terra no seu lugar destinado.

“Cobriste a Terra com a veste do oceano, e as águas assaltaram as montanhas. Mas ao teu bramido fugiram, ao fragor de teu trovão se precipitaram, enquanto subiam os montes e desciam os vales, ao lugar a cada um destinado.”

LIC

sábado, 11 de janeiro de 2025

BELLA ITALIA - DICIASSETTESIMO ATTO

A LUCCA

Alegria mesclada com saudade me inundou quando, no dia seguinte, conhecemos Lucca sob o sol da Toscana. Esses mesmos sentimentos me envolveram quando estive em Polignano a Mare, la città dei miei nonni paterni Antonio Centrone e Mariana Scagliusi.

Quando criança e adolescente, passeei por Lucca accompagnata con il mio nonni materno, il lucchesi Enrico Della Santa. Suas histórias me seduziam e nunca imaginei, mesmo sonhando conhecer, andar por suas ruelas medievais de paralelepípedos entre os muros de pedra que a circundam.

Confesso que senti como se uma fada-madrinha mi avesse incantato e portato in queste due città. Na verdade, esse encantamento me acompanhou nos 29 dias da nossa viagem.

Lucca é também a terra natal do pintor ítalo-brasileiro Alfredo Volpi e de Giacomo Puccini. Al secondo piano di un antico edificio nel cuore di Lucca, situato nell’appartamento in cui Puccini è nato il 22 dicembre 1858, o Puccini Museum revive esse famoso compositor de ópera nas partituras assinadas de suas primeiras composições, cartas, quadros, pinturas, fotografias, esboços, inclusive no pianoforte Steinway & Sons su cui Giacomo Puccini compose Turandot.

Lucca é encantadora, uma pequena grande cidade. Para percorrer seus 185 km de extensão, de traçado irregular, alugamos um quadriciclo, pois apenas alguns táxis circulam no centro histórico. 

Nós quatro nos acomodamos e partimos para admirar as construções medievais, as muitas torres, os jardins, as mais de 100 igrejas, particularmente a igreja de Santa Zita, que deu origem ao sobrenome da minha mãe – Della Santa. Vovô contava que eles eram descendentes dessa santa, padroeira das empregadas domésticas.

Depois de poucas pedaladas, a Arianne notou que a mochila, onde ela guardava os passaportes, documentos e dinheiro, tinha caído no chão pelo vão que havia nos assentos entre nós duas. Tudo estava naquela mochila. Quase enfartei! 

A Arianne e o Danilo saíram enlouquecidos para procurar. Ma benedetto Dio! Depois de alguns minutos desesperadores e muitas lágrimas, vimos o dono da loja de aluguel de bicicletas na calçada, gesticulando em nossa direção. Lá estava a preciosíssima mochila! Uma senhora, que caminhava por perto, viu a mochila cair. Ela nos chamou para avisar, mas não ouvimos. Então, a benedetta signora entregou a mochila na loja na certeza de que voltaríamos para devolver o quadriciclo.

Che sollievo! Per me è stata l'ennesima dimostrazione che Dio è stato con noi per tutto il tempo. Só tínhamos que agradecer, agradecer e agradecer.

Continuamos o passeio e chegamos à Basilica di San Frediano que fica na Piazza do mesmo nome. Várias capelas da nobreza foram adicionadas ao interior dessa basílica nos séculos XIV a XVI. Entre elas, na nave direita, a capela de Santa Zita, decorada com telas dos séculos XVI e XVII retratando episódios da sua vida.

Zita de Lucca, aos 12 anos, foi trabalhar como empregada doméstica na casa da rica família Fatinelli, à qual serviu por 48 anos, até sua morte, em 27 de abril de 1278, sempre se distinguindo por sua bondade e atos de caridade. 

Ela foi canonizada em 1696 após o reconhecimento de cento e cinquenta milagres atribuídos à sua intercessão. Quando seu corpo foi exumado em 1580, descobriu-se que estava incorrupto após 302 anos enterrado. Dio fa miracoli!

Eu chorei diante do relicário de vidro onde está exposto seu corpo mumificado, deitado em uma cama de brocado. Pensei agradecida: “No meu DNA tem algo dela”. 

Continuando nosso passeio, já sem o quadriciclo, chegamos na Torre Guinigi, a mais importante da cidade, que pode ser avistada de longe porque, no seu topo, há um jardim com sete azinheiras que insistem em crescer nesse local tão inusitado e pouco provável. 

Para chegar lá, é preciso subir 25 lances de escadas, num total de 225 degraus (ela está a 45 metros do solo), mas que garantiram à Arianne e ao Danilo uma vista lindíssima do centro da cidade, da Piazza Anfiteatro, dos Alpes Apuanos, dos Apeninos e do Monte Pisano. 

O Zé Antônio e eu, claro, não nos aventuramos. Fomos explorar as várias lojinhas nos arredores, onde comprei, entre outras coisas, uma camiseta, um moletom e um boné de Lucca para meu amado neto Lucca. 

Almoçamos num restaurante delicioso – a cidade tem boa fama pelas suas escolas de gastronomia e bons restaurantes. No final do dia, fomos para o hotel tomar um banho e voltamos para jantar na Da Ciacco Lucca, famosa por seus lanches feitos na hora, com ciabatta, mortadella, stracciatella di bufala, pomodori secchi e rucola, na Piazza Napoleone.

A cidade estava tranquila e a noite nos convidava a uma caminhada. Foi o que fizemos e, grata surpresa, nós nos deparamos com o teatro onde seria comemorado os 100 anos da morte do grande Puccini.

Che giorno meraviglioso e indimenticabile! 

Pesquisa e texto: LIC

Fonte: Maria Ana Centrone Santini