O louvor matinal, marcado para as 8 horas de todos os dias, começaria em cinco minutos. A sala estava vazia.
Pensei que estivesse.
Ele já estava lá, sentado diante do piano elétrico, atento às partituras do hinário, com as mãos delgadas como um fio sobre o teclado.
Minha impressão foi a mesma da noite anterior quando o capelão o apresentou. “Este é o Francisco, musicista, que vive de música, mas ainda não vive da música.”
Alto, magro, tronco e membros longos, um rosto harmonioso coberto pela barba branca, parecia um sabugo de milho, como o Visconde, aquele grande sábio do Sítio do Pica-Pau Amarelo.
Nesta manhã, vestia camisa branca de manga longa com o colarinho abotoado desde o pescoço, calça social preta enrugada sobre o sapato, desajustada ao comprimento das pernas.
Na sequência do seu bom dia, que me ofereceu sorridente esbugalhando os dentes alvos e afilados, soube porque ele estava ali.
“Hoje, o capelão fará o sermão na igreja. Vou substitui-lo. Podemos aguardar uns minutos até que os outros cheguem?”
Concordei, surpresa ao descobrir que ele não era um dos hóspedes.
“O senhor é pastor?”, perguntei.
“Ainda não. Sirvo como missionário voluntário onde for preciso.”
E, nos breves minutos que esperamos, Francisco contou que, quando jovem, vivera de exageros, bebendo, jogando e frequentando prostitutas e o submundo, sem eira nem beira, sem regras nem fronteiras.
“Mas, um dia, me deparei com o louco da minha cidade vestido e calçado, limpo e penteado, pregando a Palavra no coreto da praça. Ele era doido mesmo, de atirar pedra. Andava imundo, vagando pelas ruas, gritando impropérios.
“Admirei e fui atrás pra saber o acontecido, porque eu também vagava a esmo. Assisti a pregação, me converti, passei a acreditar.”
“Acreditar no quê?”, perguntei.
Ele não teve tempo de responder. Outros hóspedes chegaram e Francisco iniciou o culto.
Pensei que teríamos momentos fora dali pra conversar, pois eu ficaria hospedada ainda por um tempo e, soube depois, ele era o jardineiro do Retiro.
Não tivemos.
No restante dos dias em que estive por lá, nossos caminhos se cruzaram por diversas vezes.
Ele, sempre cuidando dos jardins. Eram muitos e, por ser um período chuvoso, a grama exigia poda constante. Eu, “atarefada” com as mil e uma atividades pra completar minha desintoxicação orgânica.
Chegada a hora de partir, uma chuva diluviana naquele dia me impediu de ir até o carro com a bagagem. Meu quarto ficava na parte externa do prédio.
Pedi na recepção um guarda-chuva e alguém para levar as malas.
Francisco apareceu.
“Além de missionário, você também é pau pra toda obra”, comentei, não surpresa porque já vira Francisco levando um colchão nas costas de um quarto para outro.
Ele sorriu e caminhamos em silêncio até o estacionamento.
Com tudo ajeitado no porta-malas, na despedida, Francisco me disse: “Sabe, dona Perpétua, se as coisas neste mundo ainda não desandaram de vez, é porque o Céu sustenta a Terra. Foi essa certeza que me salvou.”
O aguaceiro que enfrentei estrada afora somado ao que Francisco dissera me fizeram lembrar da história bíblica de Noé.
Como Francisco, a Arca de
madeira esteve à deriva, mas sobreviveu ao mau tempo.
“Cobriste a Terra com a veste do oceano, e as águas assaltaram as montanhas. Mas ao teu bramido fugiram, ao fragor de teu trovão se precipitaram, enquanto subiam os montes e desciam os vales, ao lugar a cada um destinado.”
LIC