Naquele dia, o encontro aconteceu por acaso durante o passeio matinal na pracinha.
O cachorro de João Pedro avançou rosnando pra Lulu da Pomerânia da Maria Clara, tipo criança mostrando a língua para outra criança.
“Ermenegildoooo, quieto!” João Pedro, puxando a coleira com energia, se desculpou.
Maria Clara sorriu, pegou a Bebel no colo e a conversa começou.
“Qual a raça dele?”
“É um fox paulistinha, um bom cão de guarda apesar do tamanho”, respondeu João Pedro.
“Tamanho não é documento, não é mesmo?”, Maria Clara gentilmente concluiu.
A conversa foi se estendendo para variáveis ditos e comentários, alguns até menos caninos, mas digeridos sem esforço. Enquanto isso, Bebel e Ermenegildo ensaiavam uma socialização olfativa.
A partir de então, Maria Clara e João Pedro começaram a se encontrar todos os dias naquele mesmo local e horário.
Pouco a pouco, Maria Clara foi sentindo que João Pedro era um marido aceitável e vice-versa. Concordes no amor soberano aos quadrúpedes, não desejavam transmitir a nenhuma criatura o legado da miséria humana. O Brás Cubas do Machado, que ambos também amavam, os aprovaria além-túmulo.
João Pedro beirava os 50. Maria Clara contava 32. O casamento não tardou acontecer – onze meses depois.
E a linha hereditária se fez por uma linhagem canina: Bebel pariu duas Lulus da Pomerânia. Ermenegildo fecundou diversas fox paulistinhas, mas as gestações não se concluíram, resultando em abortos por causas não identificadas.
O casal registrou em um cartório virtual a certidão de nascimento das crias que vingaram com nome e sobrenome.
Com acesso irrestrito aos aposentos do interior da casa, camas aconchegantes no quarto do casal, toneladas de brinquedos nas festinhas de aniversário, todos participavam da rotina familiar e das visitas dominicais aos "avós". O casal só se hospedava em hotéis que aceitassem pets e passaram a frequentar tão somente restaurantes inclusivos.
Até que... Nero chegou, um mestiço vira-lata com pastor alemão.
Nero tinha um histórico de rejeição. Não encontrava um lar nos eventos de adoção do abrigo que João Pedro seguia e apoiava.
João Pedro, desolado por Ermenegildo não ter lhe dado descendência, finalizou a adoção. "Nero", pensou ele, "é um vira-lata, têm genes provados e testados nas agruras da vida, será um bom reprodutor".
Mas... o que ele não sabia é que Nero tinha um perfil comportamental marcante, sequela das agruras da vida. Foram necessários seis meses de visitas ao médico acupunturista, com aplicações semanais de 40 agulhas, da cabeça ao rabo, para liberação de neurotransmissores que aliviassem suas tensões e as marcas profundas causadas pela síndrome do abandono.
João Pedro, mesmo assim, apostando numa possível descendência a partir de Nero, passou a lhe dar precedência de atendimento, tempo e lugar.
Os efeitos não se fizeram tardar.
Maria Clara, sua "filha", as duas "netas" e também o "enteado" Ermenegildo, sentindo-se cada vez mais preteridos, pediram o divórcio. Chegou à Justiça com litígio e contrato sobre a guarda, os dias e horários de visitação dos "filhos" para garantir o direito de convivência com os "pais", um ano depois da chegada de Nero.
Não sei como foi a vida dessa "família" daí em diante, mas continuo engajada na causa humana.
LIC