segunda-feira, 30 de junho de 2025

"FAMÍLIA"

Naquele dia, o encontro aconteceu por acaso durante o passeio matinal na pracinha.

O cachorro de João Pedro avançou rosnando pra Lulu da Pomerânia da Maria Clara, tipo criança mostrando a língua para outra criança.

“Ermenegildoooo, quieto!” João Pedro, puxando a coleira com energia, se desculpou.

Maria Clara sorriu, pegou a Bebel no colo e a conversa começou.  

“Qual a raça dele?”

“É um fox paulistinha, um bom cão de guarda apesar do tamanho”, respondeu João Pedro.

“Tamanho não é documento, não é mesmo?”, Maria Clara gentilmente concluiu.

A conversa foi se estendendo para variáveis ditos e comentários, alguns até menos caninos, mas digeridos sem esforço. Enquanto isso, Bebel e Ermenegildo ensaiavam uma socialização olfativa.

A partir de então, Maria Clara e João Pedro começaram a se encontrar todos os dias naquele mesmo local e horário.

Pouco a pouco, Maria Clara foi sentindo que João Pedro era um marido aceitável e vice-versa. Concordes no amor soberano aos quadrúpedes, não desejavam transmitir a nenhuma criatura o legado da miséria humana. O Brás Cubas do Machado, que ambos também amavam, os aprovaria além-túmulo.

João Pedro beirava os 50. Maria Clara contava 32. O casamento não tardou acontecer – onze meses depois.

E a linha hereditária se fez por uma linhagem canina: Bebel pariu duas Lulus da Pomerânia. Ermenegildo fecundou diversas fox paulistinhas, mas as gestações não se concluíram, resultando em abortos por causas não identificadas.

O casal registrou em um cartório virtual a certidão de nascimento das crias que vingaram com nome e sobrenome.

Com acesso irrestrito aos aposentos do interior da casa, camas aconchegantes no quarto do casal, toneladas de brinquedos nas festinhas de aniversário, todos participavam da rotina familiar e das visitas dominicais aos "avós". O casal só se hospedava em hotéis que aceitassem pets e passaram a frequentar tão somente restaurantes inclusivos.

Até que... Nero chegou, um mestiço vira-lata com pastor alemão.

Nero tinha um histórico de rejeição. Não encontrava um lar nos eventos de adoção do abrigo que João Pedro seguia e apoiava.

João Pedro, desolado por Ermenegildo não ter lhe dado descendência, finalizou a adoção. "Nero", pensou ele, "é um vira-lata, têm genes provados e testados nas agruras da vida, será um bom reprodutor".

Mas... o que ele não sabia é que Nero tinha um perfil comportamental marcante, sequela das agruras da vida. Foram necessários seis meses de visitas ao médico acupunturista, com aplicações semanais de 40 agulhas, da cabeça ao rabo, para liberação de neurotransmissores que aliviassem suas tensões e as marcas profundas causadas pela síndrome do abandono.

João Pedro, mesmo assim, apostando numa possível descendência a partir de Nero, passou a lhe dar precedência de atendimento, tempo e lugar.

Os efeitos não se fizeram tardar. 

Maria Clara, sua "filha", as duas "netas" e também o "enteado" Ermenegildo, sentindo-se cada vez mais preteridos, pediram o divórcio. Chegou à Justiça com litígio e contrato sobre a guarda, os dias e horários de visitação dos "filhos" para garantir o direito de convivência com os "pais", um ano depois da chegada de Nero.

Não sei como foi a vida dessa "família" daí em diante, mas continuo engajada na causa humana.

LIC

sexta-feira, 27 de junho de 2025

GUIMARÃES ROSA

FAÇAMOS O HOMEM À NOSSA IMAGEM, CONFORME A NOSSA SEMELHANÇA.
Gênesis 1, 26

 

COMO NÃO TER DEUS?!

Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra.

É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar- é todos contra os acasos.

Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo.

João Guimarães Rosa, 27 de junho de 1908, Cordisburgo, Minas Gerais, Brasil

quinta-feira, 19 de junho de 2025

SANTO DE DEVOÇÃO

Felícia tinha conexão com aquela santa por motivos de parentesco. Uma antiga tradição de família afirmava que eram primas por uma linha transversal de terceiro grau.

Herdara esse legado religioso a que dedicava especial veneração e com quem tinha uma relação de cumplicidade, com boas doses de interesse pessoal.

Cumpria a prática contratual romana baseada no princípio do ut des, “dou para que dês”. Aproveitava assim, promiscuamente, a devoção e a irreligião, sem desacreditar do Criador.

Se faltava dinheiro na associação dos filhos de aidéticos que ela mantinha, Felícia entrava em contato com a prima. Sem mais nem menos, aparecia um doador!

Se estava no centro da cidade, às 18h de um dia chuvoso, lhe pedia um táxi. Em poucos minutos, um taxista estacionava aos seus pés desembarcando um passageiro.

Quando perdia os óculos, era para a prima que recorria, muito mais eficiente que São Longuinho. De pronto encontrava e nem precisava dar os três pulinhos. Pois a santa nunca lhe pediu nada como contrapartida nem lhe pedia paga antecipada. Afinal, ela não era qualquer parenta.

Mas, como fidedigna pagadora de promessas, Felícia sempre retribuía pelos obséquios. Cumpria mesmo que lhe custasse deixar de comer farofa, seu prato predileto, por um ano, ou peregrinar para um lugar santo a pé, ou se vestir com os trajes da santa na data da sua morte, dia de festa.

Era nessa comemoração que vinha lhe pedindo algo especial há anos, ainda que se sentisse naturalmente merecedora. “Prima, o matrimônio é minha alma e vocação, sei que nasci para isso.”  Mesmo assim, pela força do hábito, prometia. “Em sua homenagem, minha filha terá seu nome.”

A cada ano, pedia com mais ardor, pois Felícia estava se aproximando da meia-idade. “É melhor não prometer nada do que fazer uma promessa e não cumprir. Não deixe que as suas próprias palavras o façam pecar”, aprendera lendo a trajetória de santidade da prima. 

Nessa festividade separava um cantinho da sala onde morava com a mãe viúva para colocar a imagem da prima no oratório de madeira decorado com rosinhas de rococó.

Organizava um encontro com os sobrinhos para lhes contar fatos da vida da santa com a promessa de cachorro quente e do bolo de chocolate com cobertura de brigadeiro que todos amavam. Nesse contrato comutativo, o toma lá da cá era consentido sem-vergonha pelas partes envolvidas. Ninguém era santo.

Naquele dia daquele ano, estava mais feliz do que em todos os outros. Com mais gratidão do que nunca, celebraria a prima por lhe ter facilitado o que vinha pedindo ano após ano. Casaria no próximo mês.

Logo cedo saiu para comprar as flores que enfeitariam aquele espacinho da casa e os ingredientes para o bolo.

Mas como a vida tem suas encruzilhadas, Felícia se encontrou diante de uma da qual não teve tempo de escolher direção. Se tem uma coisa que a vida nos ensina, é que nem tudo sai como planejamos.

Vinha andando, com a cabeça nas nuvens, revivendo o que vivera até então e antevendo o que poderia viver depois do casamento.

No Boletim de Ocorrência registraram atropelamento com morte súbita e omissão de socorro.

Foi enterrada vestida de noiva naquele mesmo dia do onomástico da prima santa.

LIC

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


terça-feira, 17 de junho de 2025

KAFKA


"Existem dois pecados capitais, dos quais todos os outros derivam: impaciência e indolência.
Por causa da impaciência os homens foram expulsos do paraíso, por causa da indolência eles não voltam."
Franz Kafka